O Suma é um elefante asiático gigantesco, que mora no circo Rasjhani desde que nasceu há 40 anos. Os 5 metros de comprimento, 3 de altura e 5 toneladas de peso fazem dele o mais imponente do grupo, composto por mais 3 machos, 7 fêmeas e 4 crias. Não se pode queixar muito, já que o tratador, Ravi Rasjhani, nascido na mesma semana de Suma, sempre se certificou que nada lhe faltasse e foi sempre cuidadoso, mesmo quando lhe dava as vergastadas que o seu pai o obrigava a dar quando tinham ambos 6 ou 7 anos.
Quando não está a actuar na pista está preso por uma pata com uma cordinha a uma estacazinha cravada no chão, a mesma cordinha e a mesma estacazinha desde que nasceu.
O pai de Ravi, falecido há três anos, treinara os dois ao mesmo tempo, o Suma para executar habilidades na pista e ficar quieto preso à estacazinha, e o Ravi para o punir ou premiar, conforme o caso, e agradecer os aplausos do público. Desde sempre a vida fora dura, com episódios de fome e necessidade, alternados com algumas alegrias em dias de muita plateia.
O Ravi queria ir para a escola. O seu sonho de menino levava-o com a mãe até à professora para o ensinar a ler e escrever. Contra a vontade do marido, a sra. Rasjhani procurava um professor ou professora em cada nova cidade e continuava os estudos do pequeno Ravi, com as interrupções próprias de uma vida ambulante. Quando fosse grande queria ser doutor, ter uma familia feliz e ser rico, de dinheiro e do resto, e nunca mais ter de passar sem jantar. A mãe morreu tinha ele 12 anos e o pequeno nunca mais pôs um pé numa escola. Com o passar dos anos a rotina do dia a dia instalou-se e passaram vinte e oito anos de trabalho intenso, muitas preocupações, muitos dias de chuva e nevoeiro e desespero e fome. Quando estava sozinho, nas épocas mais difíceis em que o público não aparecia e não havia dinheiro para comer, fechava os olhos e via-se no seu iate, em alto mar, a lutar com um espadarte do tamanho de um tigre segurando-o pela linha, depois colocava-o no barco e trazia-o para terra onde era admirado por todos. De seguida vendia o peixe em leilão a algum dos comerciantes das redondezas por tanto dinheiro como fazia o circo em 6 meses. Depois de abrir os olhos voltava a sentir a chuva a cair no pano de tenda e os animais a urrarem com fome.
Na semana passada apareceu no circo um homem muito bem vestido de aspecto simpático e muito rico. Queria falar com o Ravi, o dono do circo. Possuia ele próprio muitos circos, espalhados pelo país e mesmo no estrangeiro. Nos seus circos, pessoas e animais eram felizes e levavam alegria e espanto a muitos milhares de pessoas através das suas actuações. Os artistas tinham escolas para os filhos, as crianças muitos amigos com quem brincar. Os animais viviam à solta e participavam da vida diária do circo, mesmo fora das actuações. O homem ouvira falar do circo Rasjhani há alguns anos atrás quando uma criança, espectadora, caíra à arena durante a actuação dos leões. A criança fora mordida mas escapara com vida depois de acossados os leões com os chicotes e os gritos do tratador.
O homem trouxera uma chita elegantíssima que se comportava como um cãozinho, mesmo sem trela seguia o homem em todos os seus movimentos e estava tão tranquila naquele ambiente de circo desconhecido como se estivesse na sua própria tenda.
Quando Ravi chegou à tenda das visitas, o homem estava de pé, observando fotos de actuações antigas, ainda com o pai de Ravi, penduradas nos postes, com a chita sentada aos seus pés. Depois das boas vindas e do chá de cortesia, o homem começou a falar. A chita levantou-se e saíu para a rua, sozinha, debaixo do olhar ansioso de Ravi e do sorriso confiante do dono.
-“Quando eu era criança, há mais de 50 anos, “- dizia o homem- “O meu pai comprou um leão jovem a um circo vizinho. O leãozinho, que não teria mais de 1 ou 2 anos, estava muito mal tratado, muito magro e cheio de feridas. Nós não precisávamos de mais leões, mas o meu pai teve pena do animal e comprou-o pelo dobro do dinheiro que ele valeria, mesmo se estivesse forte e saudável. Eu era ainda criança e fiquei encarregue de tomar conta dele, dar-lhe comida, tratar-lhe das feridas e prover a todas as suas necessidades. Vi-me então na condição estranha de ser um criado para o meu leão: estava sempre atento às suas necessidades e tentava até antecipá-las; tratava-lhe das feridas, mudava-lhe a cama mais vezes do que mudava a minha, comia depois de lhe dar comer a ele e todas as minhas necessidades passaram para segundo plano. O leão, por outro lado, viu-se na improvável situação de ter um escravo humano sempre ao dispôr e de não ter de fazer absolutamente nada. Ambos crescemos e, quando nos tornámos adultos eu assumi as minhas responsabilidades na administração do circo e o leãozinho que tinha crescido comigo acabou sendo abatido porque não tinha qualquer préstimo e tornou-se violento com pessoas e animais.
Desde que assumi a direcção do circo tenho criado condições para cada pessoa dar o seu melhor, em responsabilidade e liberdade e o método tem resultado tão bem que me posso considerar um homem muito rico, não só de dinheiro, mas também de amizade e realização pessoal. É que a minha paixão é o circo e esta paixão tornou-me melhor pessoa e todos à minha volta se tornaram mais felizes. Por isso, parte do meu trabalho consiste em encontrar circos em dificuldades e ensinar tudo o que sei para os tornar bem sucedidos, trazer confiança aos seus artistas, saúde e bem estar a pessoas e animais e felicidade para todos.”
A chita não conseguia acreditar no que o elefente estava a dizer. “O quê? Não podes saír daqui porque estás preso com esta corda? Então não vês que é só um cordãozinho amarrado a uma estacazinha que mais parece um palito, comparado com o teu tamanho! Dás um puxão e arrancas isto tudo. Vais para onde quiseres porque ninguém te poderá parar!”.
“Não é bem assim” respondeu o elefante, mais triste que nunca. “Tu não compreendes... não tens uma corda amarrada a uma pata e não sabes o sofrimento que isto traz! Tu não compreendes.”
Então a chita foi-se embora de volta para o pé do dono, sorrindo tristemente e abanando a cabeça. Encontrou-o à espera junto da bilheteira fechada. Olharam ambos para as tendas rotas, as jaulas ferrugentas e os malabaristas sujos de olhos tristes. À entrada da tenda das visitas Ravi via afastar-se o futuro sem sequer tentar agarrá-lo. Suma barriu com força. O homem e a chita voltaram as costas, encolheram os ombros e nunca mais foram vistos.
Rui Gabriel, http://ziglo.blogspot.com
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