O problema é que ele estava cheio de frio e de fome. Começou a miar e a procurar a mãe por todo o lado mas não a encontrou. Foi procurar comida, guiado pelo olfato, mas as tampas dos contentores de lixo, que o seu pequeno tamanho não impediu de trepar, estavam bem fechadas e a refeição tornou-se impossível.
Chegou a noite. O vento foi vencido por um abrigo debaixo da escada de uma vivenda, mas o frio e atravessava a pelagem ainda fina e fazia doer os ossos. Não dormiu nada. A fome dava-lhe dores de barriga.
O dia seguinte passou-o na mesma busca. Nem mãe, nem comida. Instintivamente ele sabia que morreria se não encontrasse uma solução para a sua vida. Chegou a noite e a fome apertava mais que nunca.
Então reparou que por cima da escada onde tinha passado uma noite e se preparava para passar a segunda havia uma porta de vidro e de lá de dentro vinha um aroma delicioso, acompanhado de vozes de crianças a brincar e a rir. A esperança acendeu-lhe a alma e correu para a porta. Lá dentro uma família jantava e ria no quentinho de uma lareira acesa.
O gatinho então desatou a miar com quanta força tinha. Sabia que se pudesse entrar ali estaria salvo. Miou, miou, miou. A certa altura a porta abriu-se e o pai daquela família gritou: "sai daqui vadio!". e deu-lhe um pontapé que o atirou para o outro lado da rua.
Aquilo doeu. Doeu tanto como dói a única oportunidade perdida de vez, por causa das acções ou opiniões de outros. O gatinho da história voltou para debaixo da escada e passou outra noite sem dormir e sem comer. Quando amanheceu estava muito fraquinho. O estômago doía-he muito e o frio não o deixava parar de tremer. Ele sabia que iria morrer em breve.
Quando chegou a noite de novo, o desespero levou-o outra vez à porta de vidro. Lembrava-se bem do pontapé da véspera, mas a fome e o frio, e a visão da lareira e da mesa farta deram-lhe coragem. Colocou-se com o narizinho junto ao vidro, a olhar lá para dentro e desatou a miar, miar e miar.
Passado um ou dois minutos a porta abriu-se e o pai gritou: "Outra vez aqui? Vai-te embora!" E atirou-lhe um pontapé ainda mais forte que o primeiro. O gatinho voou e caíu sobre uma pedras amontoadas do outro lado da estrada.
Muito desanimado enrolou-se debaixo da escada e enquanto tremia de frio preparou-se para morrer. No dia seguinte o sol apareceu. O gatinho tinha adormecido e abriu os olhos. viu o sol e deslizou de debaixo da escada para se aquecer um pouco. Estava tão fraco que mal podia caminhar. Tentou ir em busca de comida, mas estava demasiado cansado. Sabia que não sobreviveria outra noite ao relento.
Quando chegou a noite, debaixo da escada, pensava nos meninos dentro de casa, no aroma da comida e no calor da lareira, e pensava em ir de novo miar ao pé da porta. Mas vinham-lhe de novo à memória os gritos do pai e os pontapés. "Deixa estar. Estás aqui bem.", decidia então. A barriga já não lhe doía, e até o frio parecia coisa normal, estava anestesiado pela proximidade da morte e sentia-se confortável.
Então, do fundo dos seus instintos, veio-lhe uma energia inesperada, sem querer saber dos pontapés, ou das opiniões do pai ou de quem quer que fosse, e sem pensar sequer se teria sucesso ou não, arrastou-se escada acima e foi-se colocar mesmo em frente à porta a olhar lá para dentro enquanto as crianças brincavam. Só conseguia miar muito baixinho, mas com as garras conseguiu arranhar a porta. A cada miado e a cada arranhadela estava a preparar-se para o pontapé que ele sabia ser o último mas nunca desistiu. Então a porta abriu-se e uma menina gritou "olha que gatinho tão lindo!" Os irmãos vieram a correr e levaram-no para dentro.
O que o gatinho não sabia é que os pais tinham saído nessa noite para ir ao cinema e as crianças queriam tanto um gatinho que os pais já estavam cansados de os ouvir. Quando chegaram a casa não tiveram coragem de dizer não às crianças e hoje aquele gatinho é um grande gato.
Tudo porque decidiu lutar só mais um dia.
Rui Gabriel, http://ziglo.blogspot.com